quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

A Guerra segundo Jacques Tardi


Este texto foi extraído do Blog português Ler Bd

Devo iniciar este texto com a confissão de que faço parte daquelas pessoas que, aprendendo com Timothy Leary, acreditam que não haverá maior oxímoro na linguagem humana que “inteligência militar”. Independentemente de todos os considerandos que poderão tornar essa bruteza generalista relativa, e a importância ou contornos positivos que em condições extraordinárias os militares possam ganhar, reservo-me ao direito de pôr tudo no mesmo saco, feito de areia e vento.

De todos os conflitos bélicos que pontuam, se não mesmo tecem, a história humana, talvez aquele cujo nome parece esconder o que implicou na verdade seja o da “Primeira Grande Guerra”, como se pudessem vir alguma vez a ser contabilizadas num futuro próximo, ou como se a sua grandeza fosse apenas pautada pelos manuais depois do ocorrido e não para quem sofre as consequências directamente. A começar pelos soldados, os “cabeças de tijolo”, a carne para canhão. Hoje em dia, com a profissionalização dos exércitos no mundo ocidental (para não falar da sua mercenariazação), é cada vez menos possível falar dos “pobres coitados” dos soldados, mas neste conflito em particular é mesmo disso do que se tratava.

É sabido, para os contínuos leitores de Tardi, a sua constante revisitação deste conflito na sua obra, como se este fosse o Poema Contínuo próprio do autor, aquele corpo a que ele tem constantemente de retornar para corrigir uma figura, repensar a sintaxe, apurar uma perspectiva. Este novo projecto de Tardi, conjuntamente com o historiador (precisamente desta época) Jean-Pierre Verney, é feito nos mesmos moldes de produção de L’Étrangleur, iniciado em 2006 e sob a forma de um jornal ilustrado. De Putain de Guerre saíram seis números, seis jornais (o sub-tútulo da série tanto se reveste do seu sentido literal de “diário”, “caderno de apontamentos”, como da publicação sucessiva dessas mesmas notícias), cada um intitulado com um ano da guerra (estendida desde as suas origens em 1914 aos vomitados gritos de alegria dos vitoriosos no final, em 1919), seguindo (supomos) a perspectiva de um só soldado sem nome, e sempre acompanhado com um apêndice de um texto corrido de Verney, com algumas fotos de arquivo. Putain de Guerre (e L’Étrangleur,), neste formato de jornal, visa, creio, que a experiência da leitura se mescle fantasmaticamente à da própria ficcionalidade desse acto, isto é, um transporte ficcional do leitor ao tempo dos eventos retratados nessa publicação: os anos 50 no caso do assassino, os anos 10 no caso da 1ª Grande Guerra. A própria composição das páginas, a esmagadora maioria com três vinhetas ao comprido ao largo de toda a página, mas outras com esquemas geométricos já experimentados antes em Le Démon des Glaces (1974), reitera essa sensação. Os jornais seriam depois coligidos e a série reformatada em dois álbuns mais clássicos, com a única diferença dos cabeçalhos dos jornais transformados nos livros.

Por outro lado, esta nova revisitação do tema da Guerra de 14-18 remete-nos a, tentativamente, os melhores trabalhos de Tardi, começando com um dos primeiros, La véritable histoire du Soldat Inconnu (1974) a um dos mais poderosos, C'était la guerre des tranchées (1993), sem descurar com aqueles onde tentou explorar algumas das valências possíveis da composição das páginas para fazer emergir uma outra camada de interpretação (o já citado Démon des Glaces) ou os que, adaptando obras literárias, se prestam à rememoração da História de um certo sinal político em França, de uma resistência ao poder instituído e à dita moral equilibrada (Le Cri du peuple, finalizado em 2004).

Tardi tem uma produção múltipla, que lhe permite experimentar outros humores, conforme nos recordaremos pelos seus livros da personagem Adèle Blanc-Sec, sobre os quais De la Croix afirmou serem caracterizados por uma “mecânica narrativa tão gratuita quanto eficaz, sem qualquer fito senão o de durar, isto é, de acumular obstáculos”. Nesse sentido, estariam mais próximos dos princípios cinético-cómicos instituídos sobretudo por Töpffer, e por toda a banda desenhada clássica infanto-juvenil, do que das inflexões que o próprio Tardi faria no “neo-realismo” da banda desenhada francófona dos anos 1960-70, que o crítico Bruno Lecigne escrutinaria tão especialmente nas suas obras. As raízes dessa exploração estarão na sua colaboração com Pierre Christin, por exemplo…

Se Tardi volta a este tema, se o compõe continuamente, é porque trabalha, sem qualquer dúvida, sobre o seu “sintoma”: “La der des ders” [“ a última das últimas”, apodo pelo qual esta guerra foi conhecida logo após o seu término] é o “fantasma” que retorna mais vezes à sua obra. Herança do avô, se pretendermos incorrer em facilitismos providenciados pela biografia psicanalisante. Obsessão de território, se preferirmos mantermo-nos na área desenhada pela “especialização” mercantilista e técnico-profissional de um autor da indústria da banda desenhada.

Mas a continuidade do tema, ou matéria, implica a sua atomização, isto é, um contínuo e subsequente escavar dos seus elementos, atomização a qual espelha igualmente outros processos idênticos instituídos no seu interior: a insistência sobre a desagregação dos corpos, rebentados nas linhas de combate, mas também da moral e da política. Apesar da citação dos discursos heróicos e patrióticos dos grandes generais e luminárias do estado francês de então (epígrafes que servem para ser demolidas logo a seguir), e a carregada ironia do narrador de quando em vez, o posicionamento político principal dá poderosíssimos sinais de uma esquerda resistente a esses primeiros discursos patrióticos e militaristas... A narração é sempre feita em legendas supra-diegéticas, nunca em falas. A inscrição desse texto numa dimensão fora do espaço e do tempo que se vê representado levar-nos-ia a pensar num momento de reflexão posterior, mas a raiva que a informa é ainda viva, ou como se tivesse sido acabada de ser vivida. É como se estivéssemos a ver uma fileira de imagens que pertencessem a uma máquina rememoradora, e elas mesmas despertassem a consciência e a leitura de quem as viveu na carne. São muitas as vezes em que essa voz desejaria que os pelotões de execução dos seus próprios soldados, mortos “para dar o exemplo”, se virassem contra os líderes militares, o tom de chacota face à mortandade absolutamente estúpida dos campos de lama conquistados metro a metro ao longo de semanas para glória de ninguém, e os comentários repentinos que mostram a percepção profunda de que o conflito não era feito em nome de qualquer princípio nobre, mas antes como forma de experimentação militar e política, método de olear a máquina capitalista, jogo de xadrez de influências efémeras feito pelos burocratas de mãos limpas nas capitais.

Os interesses económicos por detrás de certas decisões, e os erros ignaros de certas decisões tomadas “em nome da honra” ou “por razões estratégicas” são como que uma forma de embelezamento invertido. No último ano, a voz narradora passa a falar de um “tu” que se vai diferenciando, pelas imagens, pelo papel social que assume, etc. Esse “tu” nunca somos nós, mas um “ele” ou “ela” que foram, de alguma forma, um elemento da rede que compôs este conflito. Há aí um momento em que ela se dirige aos soldados que escrevem nos seus diários as suas impressões e ideias da guerra, as vozes que jamais se fariam ouvir nos grandes compêndios da história ou nos discursos comemorativos.

E a razão dessa voz não ser ouvida é explicada: “E depois um obus cortou-te ao meio. Não descobriram o teu caderninho nem, com ele, confiadas aos teus cuidados, as nossas misérias, os nossos gritos de desespero, de dor, o nosso sofrimento, os nossos testemunhos assim perdidos como se tivéssemos sido fechados para sempre numa garrafa atirada a um mar de sangue e lama”.



Estas associações políticas não estão longe de uma atitude historicamente existente, à época, sobretudo, ou notavelmente pela via da arma do desenho, com uma publicação como a l’Assiette au Beurre, que reunia alguns dos mais vitriólicos cartoonistas e ilustradores de imprensa do seu tempo, por vezes de cariz anárquico assumido, em que parece ser uma mescla curiosa entre o grotesco e a sátira, cuja diferenciação reside não nos instrumentos gráficos ou no valor representacional em si, mas no seu emprego ou fito: um desabrido humor pândego no primeiro, moralizante, positivo, programático no segundo.

Tardi usa vastamente os documentos existentes da época, não se coibindo de fazer interpretações gráficas suas a partir de documentos fotográficos (ou de outro tipo, fílmicos, desenhados, etc.) impressos em publicações como L’Illustration, The War Illustrated, o Wipers Times, aos jornais dos regimentos alemães e toda a propaganda de parte a parte. Como disse, Putain de Guerre apresenta um apêndice a cada número com um texto e documentos da época, tornando visível essa camada de investigação e emprego. Quase todas as informações dadas pelo narrador no texto, ou por algumas imagens, vêm-se depois corroboradas, ancoradas na realidade, por assim dizer, nesse apêndice.

Daí que muitos dos episódios que poderão parecer caricatos, estranhos, ridículos, não são da inventiva de Tardi, mas exactos retratos dos processos reais documentados: tribunais militares (sumários, absurdos e idiotas) em igrejas ou escolas de pequenas aldeias estilhaçadas, a partilha de cigarros entre “inimigos” nas trincheiras, histórias de pacotilha e “o heroísmo dos generais” ou dos funcionários dos ministérios, e pormenores que têm tanto de atroz como de risível (nesse sentido, e bem vistas as distâncias de humor e ferramentas, a última série de Blackadder partilha um posicionamento ético)...

A ideologia de Tardi não pode ser mais nítida do que o é, mas não tomba jamais num mero panfletarismo bacoco ou idioticamente ingénuo (“War is stupid”, canta Boy George...). Reveste-se de uma forte couraça irónica, para fazer representar os corpos destroçados e o ódio dos soldados pelos superiores e o estúpido cortejo de estúpidas ordens e o humor, nigérrimo, da guerra das trincheiras. Tardi – e, no seguimento de um artigo nosso sobre a banda desenhada de guerra, Sacco, Kurtzman, Oesterheld/Pratt, - faz daqueles trabalhos que contrastam com o que usualmente surge como “war comics” (mesmo tendo em conta brechas nessa noção, como a antologia da Mammoth Books), tal como, no cinema, em vez de olharmos para Rambo ou Pearl Harbor, olhássemos antes para Paths of Glory de Kubrick (com o qual Tardi partilha a matéria), No Man’s Land, de Danis Tanovic, ou O Paraíso, Agora! de Hany Abu-Assad.

A linguagem de Varney, numa continuação e inflexão dos trabalhos de Tardi, e na esteira de uma tradição francófona de longa vida (que une Rabelais a Céline, Ramuz a Albert Cossery), pauta-se pelo princípio do sarcasmo e da língua falada. A voz que narra ao longo do livro, mosqueada de calão, de turpilóquios, de um exclusivo argot das trincheiras (outro dos apêndices à série), aprisionado nas legendas recitativas como se a falta de balões quisesse mostrar o silêncio a que está votada, apenas o torna mais mordaz, de resmungo Em muitas instâncias faz-nos compreender que pertencerá ao jovem soldado – que veremos envelhecer por dentro – que vemos atravessar algumas dessas cenas (o uso de pronomes pessoais na primeira pessoa ajuda, evidentemente), mas noutras parece revestir-se de um carácter, não diria universal (o que o é?) mas superior à acção e percepção limitada dessa mesma personagem. Os comentários e informações do quadro mais geral da guerra associam-no a uma voz enciclopédica, histórica, que não lhe poderia pertencer enquanto personagem ocupada nos próprios acontecimentos moleculares (o que une, fantasmaticamente, à noção do Soldado Desconhecido). Talvez então seja a voz dessa personagem pertença de um futuro, no desiludido fecho da guerra, e as imagens à sua experiência passada. A questão não é jamais resolvida, e é essa indeterminação que torna o fluxo de Putain de guerre uma obra maior.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

O gato que queria ser teólogo


A fantástica série "O gato do rabino", do francês Joann Sfar, chega ao cinema em 2010 (ver site oficial do filme). A história, que está sendo editada no Brasil pela Jorge Zahar Editor, é um absoluto sucesso de vendas na França e em 17 outros países onde já foi lançada. Só na França foram mais de 750 mil exemplares vendidos.

"O gato do rabino" conta a história de um gato que come o papagaio do seu dono e se põe a falar. Mais do que isso, o gato se põe a debater teologia com o rabino e resolve que ele (o gato) também deve fazer o Bar Mitzvah (ritual de iniciação do jovem judeu na sociedade).

A série (que é composta de cinco volumes, todos eles já lançados na Europa) reúne humor, filosofia e história para falar sobre religião e tolerância. Sfar, que tem mestrado em filosofia, é considerado um dos mais importantes artistas da nova geração de quadrinistas franco-belgas. Como filho de pais judeus, ele usa as tradições judaicas para fundamentar boa parte de suas histórias.

Já a técnica do seu desenho remete imediatamente a uma das suas principais influências: Marc Chagall. Sfar usa um traço simples e ao mesmo tempo detalhista. As formas são ligeiramente cômicas, mas o uso das cores é generoso e impactante. O autor consegue reproduzir as luzes e cores da Argélia do início do século XX (onde judeus sefarditas e árabes viviam em harmonia).

Agora é esperar e contar com alguma sorte para ter a chance de assistir "O gato do rabino" nos cinemas brasileiros.

Erotismo e Quadrinhos


Esta dica de leitura vem do blog português "Ler BD", de Pedro Moura

Este livro surge como uma descoberta – bombástica, como se espera – da parte de Craig Yoe, editor de vários gestos de redescoberta e reavaliação de pérolas relativamente obscuras da banda desenhada norte-americana da “Idade de Ouro” (um período que se cinge à banda desenhada dos comic books, sensivelmente entre as décadas de 1930 e 1950, e que deixa muita produção, e até mesmo uma atitude mais ampla, de fora do foco de atenção), como a Modern Arf.

Secret Identity The Fetish Art of Superman's Co-Creator Joe Shuster é uma colheita de alguns dos desenhos da Nights of Horror, a qual pode ser descrita como uma (passo a citar) “revista ilustrada [ou de banda desenhada] de fetichismo sadomasoquista”. A prosa é dactilografadas, e as cópias de má qualidade, mas de facto existiram cerca de uma vintena de números publicadas na década de 1950, e vendidas “debaixo do balcão”, dada a sua natureza sexual.

Apesar de hoje nos parecerem imagens quase cândidas, junto a muita da publicidade ou vídeos de música pop, era o que passava por pornografia na sua época. A “bomba” está no facto de que os desenhos foram muito provavelmente feitos por Joe Shuster, o co-criador e desenhador do Super-Homem (estreado em 1939). Yoe explora esta produção de Shuster, alargando o material e afunilando no autor aquilo que já antes explorara em Clean Cartoonists' Dirty Drawings.

A investigação de Yoe não se limita somente à apresentação do material. A sua introdução é relativamente completa no que diz respeito à integração destas publicações na história pessoal e profissional de Shuster, na cultura do tempo, sobretudo tendo em conta o ambiente negativo em relação aos comic books nos anos 50, protagonizado pelo Dr. Frederic Wertham, e ainda explorando as ligações destes livrinhos a um crime protagonizado por uma gang de, cito correctamente, jovens judeus nazis. Wertham surge as mais das vezes como uma espécie de Torquemada em relação à banda desenhada, e são raros os escritores e defensores da banda desenhada que deixam de lado uma oportunidade para demonstrar o quão errado o psiquiatra estava. Porém, a verdade é que o caso é bem mais complicado do que o pintam, e Wertham não deixava de ter razão em que a banda desenhada, sobretudo aquela veiculada por comic books comerciais de géneros tais como os dos super-heróis, veiculavam de facto uma ideologia fascizante. E que por passar por “mero entretenimento” e “fascinante”, mais perniciosa se tornava a mensagem mais profunda. Todo o processo que levaria às várias acções censórias dos comic books (cujo corolário seria o famoso Comics Code) entrosam em acontecimentos mediáticos da altura, como os tais crimes citados, e com publicações específicas transformadas em “provas” apresentadas nas comissões. Nights of Horror foi uma dessas provas.

As histórias desta publicação mostram sempre pequenas e simples tramas em que alguém é dominado por outrem e obrigado a cometer actos de abuso sexual, ou outros (drogas como a marijuana, a morfina e a heroína surgem também, tal como o fetichismo nazi, formas de escravatura moderna, etc.). os pontos altos estão nas cenas em que se amarram, torturam, chicoteiam, ou humilham as vítimas. Pode ser algo de tão brando como umas belas palmadas nos rabiosques transformados em bongos, como algo de violentíssimo como uma facada no abdómen. Apesar de jamais se ver um pêlo púbico, ou uma cena sexual explícita, vê-se sangue, suor e lágrimas e “esgares de sofrimento”. Apesar de existir uma quase democrática distribuição de papéis entre vítimas e torturadores entre homens e mulheres, homens e homens, mulheres e mulheres, brancos e negros, velhos e jovens, a verdade é que as mulheres, por todas as razões sobejamente conhecidas, acabam por servir de principal palco de objetificação e fetichização. É bem possível que, na altura, Nights of Horror, entre outras publicações, tenha servido de pasto a fantasias consentidas não entre dois (ou mais) adultos mas a actos forçados. Aí está parte do pasto de Wertham, não sem razão...

Esta série foi publicada circa 1957, um período negro na vida profissional e pessoal de Shuster, que está directamente relacionada com a novela da sua batalha judicial, junto com Siegel, pelo reaver dos direitos do Super-Homem, os quais continuriam nas mãos da DC. O facto de, aceitando a tese de que são de Shuster estes desenhos, terem sido fruto deste período é utilizado como ponto de partida para uma análise do que sucede as estas personagens – algumas das quais parecidíssimas com as personagens de Clark Kent/Kal-El, Luthor, Jimmy Olsen e Lois Lane – como uma espécie de desejo de vingança, fazendo torturar as personagens heróicas, derrubando moralmente os estandartes dos princípios vigentes norte-americanos e permitindo, sem aparente reviravolta, o triunfo dos maus. As histórias não são apresentadas na íntegra: nem o texto é mostrado (salvo umas breves citações) nem as ilustrações são completas (apresentam-se de três a cinco, em média); essa estratégia faz com que não estejamos seguros de qual o desfecho destes contos imorais, não sabendo, portanto, se estaríamos a enfrentar uma dolorosa mas segura “modern moral subject” (para citar uma expressão de William Hogarth), ou se uma fantasia de role-play de algo que não poderia (deveria?, tememos cair num papel moralizador) acontecer na sociedade consensual (não há espaço para “safe words” nestas ficções).

Independentemente do que os fanboys (Yoe inclusive, senão particularmente) poderão querer argumentar, a verdade é que Shuster não é um bom artista. Ainda que as primeiras aventuras do Super-Homem apresentem uma abordagem gráfica relativamente inédita na altura (1939), uma espécie de encontro semi-equilibrado entre uma “linha clara” americana e um realismo incipiente (estamos longe de Foster), o que lhe merecerá (para além do incontornável e seminal papel que teve na fundação de todo um novo género e indústria na banda desenhada popular) um papel de destaque, não podemos estar a falar de uma conquista em termos artísticos, visuais, formais. Antes de Shuster, tinha havido McCay e Feininger, Foster, Caniff e Alex Raymond, e depois dele viriam Irving Tripp e Carl Barks, Wally Wood, Toth e Kirby (que ainda demoraria a ganhar os contornos pelos quais é hoje mais famoso, mas havia trazido desde logo um dinamismo inédito às pranchas de acção) e outros... E cingimo-nos à banda desenhada tout court. Nessa companhia, o seu suposto virtuosismo dilui-se rapidamente. Não quer isto dizer que não haja uma mão-cheia de características próprias, identificáveis, que se repetem em Nights of Horror (e que servem de nódulo identificativo da parte dos investigadores citados por Yoe, e pelo próprio editor). Todavia, algumas dessas características são negativas: a total inabilidade em desenhar mãos, a pobre diâmica dos corpos, as impossibilidades ou disparates anatómicos, a limitada escala de expressividade que os rostos conseguem transmitir. Características que abundam em Nights of Horror, e que ganham por vezes contornos risíveis. [O que aumenta o seu interesse enviesado...]

Poderíamos dizer que essas são características típicas da banda desenhada pornográfica (ou, se preferirem, “erótica”, “de porno-chanchada”, “fetiche”, etc.), mero sub-produto de um comércio alternativo e abscôndito. Mas as “girls” de Alberto Vargas faziam parte do imaginário mainstream dos anos 40, a Bizarre já era produzida desde 1946 e a Exotique desde 1956, a Bettie Page já tinha ajudado a recriar toda a panóplia erótica, e a Sweet Gwendoline de John Willie era já uma personagem famosa. Os dois papas desta arte, Gene “Eneg” Bilbrew e Eric Stanton, haviam marcado o território já com verve, talento, personalidade e verdadeiro salero. Mais, não faltaria muito para Tom of Finland começar a publicar nos Estados Unidos, mas imaginamos que os clientes não fossem os mesmos… E ainda poderíamos recordar a sistemática situação de bondage em que a Mulher Maravilha (1941) de Charles Moulton se encontrava a cada aventura, mas isso remeter-nos-ia para outra história, integrada na dimensão fetichista e potencialmente sexuada dos próprios super-heróis, discussão que não cumpre agora perseguir.
O interesse de Secret Identity cinge-se, portanto, a uma mera questiúncula arqueológica e arquivística, que permite desdobrar um pouco mais um vinco na vida e obra de um artista em particular, mas não a(s) arte(s) em si.

Existe um blog específico a este livro, no qual poderão seguir algumas informações.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Duas obras fundamentais para quem estuda quadrinhos

Para quem estuda ou pretende estudar a linguagem dos quadrinhos mais a fundo, vão aqui duas dicas imperdíveis disponíveis no Blog Filocomic.

Estão acessíveis na Internet (em Espanhol) dois livros fundamentais para compreender melhor os quadrinhos como forma de linguagem: "Técnica de la Historieta de la Escuela Panamericana" e "Los Lenguajes Del Cómic".

"Técnica de la Historieta...", lançado em 1966 pela célebre Escola Panamericana de Arte Argentina é resultado de um feito memorável no cenário dos quadrinhos mundiais. Afinal, qual outra escola conseguiu reunir como professores nomes do nível de Hugo Pratt, Quino ou Alberto Breccia?

O segundo livro, escrito por Daniele Barbieri, lançado em 1991, é outro obra fundamental para quem estuda quadrinhos. O livro é item de referência para qualquer um que procura estabelecer uma abordagem mais reflexiva com os quadrinhos. Apesar disso, o texto tem uma leitura fácil e acessível. Confira!

Crônica de um país sob o terror

O blog espanhol La Cárcel de Papel publicou hoje uma resenha sobre o lançamento - no mercado editorial espanhol - de um quadrinho que relembra um momento importante da recente história do Peru: a Comissão da Verdade e Reconciliação.

Os autores Luis Rossel, Alfredo Villar e Jesús Cossio fazem uma crônica minuciosa da brutal situação que viveu o Peru durante a década de 1980. A violência do Sendero Luminoso e do Exército peruano transformou o país em um imenso cemitério, com mais de 70.000 mortos entre a população civil.

Os autores descrevem a crueldade de todos os grupos militares e paramilitares envolvidos e o sofrimento da população que assistia impotente a espiral de violência em que o país foi mergulhado.

Vamos aguardar, com muita paciência (sentado é melhor, senão cansa), que alguma editora brasileira resolva lançar o livro por aqui. Aliás, assunto para um próximo comentário deste blog é a hegemonia dos quadrinhos americanos e europeus no mercado brasileiro. Poucos (diria até - pouquíssimos) autores latino-americanos, africanos ou asiáticos - exceto os japoneses - conseguem ser publicados por aqui.

Confira uma amostra do livro no site da editora.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Artistas falam sobre seu processo criativo

Esta dica é imperdível. O site do jornal The New York Times disponibiliza uma página onde os artistas Seth, Art Spiegelman, Chris Ware, Joe Sacco e Chester Brown dão um depoimento sobre a linguagem narrativa dos seus trabalhos e explicam seu processo criativo. Não deixe de conferir

De Profundis - poesia em movimento


O artista espanhol Miguelanxo Prado é um dos mais importantes e respeitados quadrinistas espanhóis da atualidade. Ele se tornou conhecido mundialmente ao ilustrar uma das histórias da série The Sandman, de Neil Gaiman, mas antes disso já tinha uma trajetória de sucesso na Europa.

Em seu projeto mais recente ele resolveu inovar, e se aventurou em uma nova arte: o cinema. Após cinco anos de exaustivo trabalho Miguelanxo Prado lançou "De Produndis" - um filme de animação inovador que conquistou o Prêmio Goya (um dos mais importantes prêmios de cinema na Europa) em 2007 e foi exibido em algumas poucas salas de cinema do Brasil em novembro de 2009.

Para realizar o filme, Prado pintou à mão quase 20 mil imagens para depois uni-las em computador. O artista utilizou, na maior parte do tempo, a técnica da pintura à óleo. Isso fica bem nítido ao vermos o filme: a sensação é de assistirmos uma galeria em movimento.

O filme conta a história de um pintor que sempre sonhou em ser marinheiro para conhecer os seres e as impressionantes formas e cores que habitam o mar. Sua viagem fascinante o leva, entre naufrágios, baleias e sereias a um mundo fantástico e de sonho. Enquanto o pintor empreende sua viagem, a esposa o aguarda em casa, no meio do mar, tocando seu violoncelo melancolicamente. Nenhum dos dois sabe se algum dia voltarão a encontrar-se.

Em uma entrevista, Prado disse que precisava experimentar este desafio de produzir um longa de animação, mas o quadrinho continua a ser para ele a arte suprema: "Há uma conclusão clara depois de todas as linguagens que utilizei: a banda desenhada é aquela que eu acho mais potente e onde tenho maior satisfação com a criatividade. A combinação é quase perfeita", disse.

O jornal espanhol El País comenta que o filme é "Uma viagem à zona secreta do ser humano, aos sugestivos e turbulentos fundo do mar e da psique. Sonho e pesadelo. Tormenta, naufrágio e paraíso."

O filme não tem diálogos. Toda a narrativa e a força dramática está nos desenhos e na trilha sonora construída pelo músico espanhol Nani García.

Na Europa está à venda um ábum que reúne a história em quadrinhos - feita a partir dos desenhos elaborados para a animação - e um DVD com o filme.

O trabalho é imperdível. Se o filme (por sorte) ainda estiver em exibição na sua cidade, não deixe de assistir. Ou procure na locadora mais próxima...

Confira um trailer oficial do filme e dois programas veiculados em TVs espanholas: