sábado, 13 de novembro de 2010

Beirute: A guerra e o cotidiano


O que fazem as pessoas de uma cidade mergulhada em anos de guerra civil? Como vivem? Que fazem no seu dia-dia para fugir das balas dos franco-atiradores, para driblar as blitze de milícias armadas nas ruas pelos diferentes grupos em conflito?

A artista libanesa, Zeina Abirached, revela em seu livro “O jogo das andorinhas” o cotidiano da sua família e dela própria, em meio ao drama da guerra que mergulhou Beirute no caos durante mais de 40 anos.
Em uma prosa fluida Zeina desfia as memórias: “Meus avós paternos viviam a poucas ruas da nossa casa. As pessoas do bairro inventaram um sistema para circular entre os edifícios evitando os franco-atiradores. Para atravessar as poucas ruas que nos separavam, tínhamos que executar uma complexa e perigosa coreografia. Eu fui criada no andar térreo do apartamento em que nasceu meu pai. Seguindo o modelo da época, a nossa casa era composta de um grande salão retangular no centro, que se comunicava com as demais partes da casa. Com a falta de segurança dos cômodos expostos à rua, fomos pouco a pouco condenando a cozinha, o refeitório, os dormitórios, até ficarmos confinados ao hall de entrada da casa.”

Zeina revelou em uma entrevista que, em abril de 2006, ela assistiu uma reportagem filmada em Beirut 22 anos antes. Os jornalistas conversavam com os moradores de uma rua próxima à linha que dividia a cidade em duas partes (crtistã e muçulmana). “Uma mulher, bloqueada pelos bombardeios na entrada de sua casa disse uma frase que me marcou: ‘Eu diria que, pelo menos, aqui estamos provavelmente mais ou menos a salvo.’ Aquela mulher era minha avó.”

É impossível ler Zeina Abirached e não lembrar de outra artista que conquistou o ocidente: a iraniana Marjane Satrapi, autora da premiada série Persépolis. Tanto na narrativa, quanto no traço que se assemelha à xilogravura, em seu inconfundível contraste de branco e preto (herança da arte mulçumana dos séculos X e XI). Zeina vive em Paris desde 2006, onde freqüentou a Escola Nacional de Artes Decorativas e publicou os seus três primeiros romances: ‘’Rue Youssef Semaani”, “38” e “O jogo das andorinhas” - todos ainda inéditos no Brasil.

Intolerância religiosa

A guerra civil no Líbano surgiu com a disputa de poder entre os diferentes grupos religiosos que vivem no país: cristãos maronitas, sunitas (muçulmanos que acreditam que o chefe de estado deve ser eleito pelos represenanttes do islã), drusos, xiitas e cristãos ortodoxos. Em 1958, com os sucessivos conflitos na região e a emigração de 170 mil palestinos, o complicado equilíbrio foi rompido.

“A guerra civil explodiu em 1958, com insurreições muçulmanas contra o presidente maronita Camille Chamoun (pró-norte-americano), sob inspiração dos regimes nacionalistas pró-soviéticos da Síria e do Egito. Tropas norte-americanas desembarcam no país, provocando imediato protesto soviético. A crise é contornada, depois de negociações, com a substituição de Chamoun e a retirada norte-americana.

Após a saída das tropas dos Estados Unidos (EUA), é encontrada uma solução política, a pedido da ONU (Organização das Nações Unidas). Organiza-se um governo composto de líderes dos vários grupos religiosos do país. O frágil equilíbrio de poder, no entanto, rompe-se na década de 70. Uma nova derrota árabe na Guerra dos Seis Dias, em 1967, e o massacre dos palestinos na Jordânia durante o Setembro Negro, em 1970, elevam para mais de 300 mil o número de refugiados palestinos no Líbano. “

Nessa época uma pessoa podia ser presa ou assassinada ao parar em uma blitz apenas por ter um documento que apontasse a “religião errada”. Enquanto isso, em casa, as pessoas se reuniam em volta de um rádio para acompanhar as notícias sobre os conflitos, como quem ouve notícias sobre o trânsito e engarrafamentos. O radialista anuncia: "Tiros de bazuca no perímetro da Vila Mansour. Bombardeios no setor próximo ao hipódromo, até agora temos 81 mortos e 221 feridos..."

O jogo das andorinhas
Uma frase pintada em um muro da cidade anuncia: "Morrer, partir e regressar é o jogo das andorinhas". De fato esta é a rotina de parte dos moradores da cidade: mudar-se constantemente. Assim como os pequenos pássaros que abandonam os ninhos onde nasceram e foram criados para voltar a eles anos depois...

Em uma entrevista à agência espanhola EFE, Zeina revela que começou a ler quadrinhos antes mesmo de aprender a ler. Seus pais tinham uma excelente biblioteca franco-belga e os quadrinhos eram parte importante da coleção. "Como nasci na guerra em 1981, minha infância está vinculada a ela e tudo acabava parecendo normal. Minha intenção ao escrever essa história era pintar a vida cotidiana e mostrar como, durante quinze anos, a gente conseguiu se acostumar com a tragédia." Apesar dos seguidos anos em guerra civil, ou talvez pelo impacto que o conflito gerou, Zeina não se interessava em contar a história oficial, nem seus aspectos políticos: "Eu queria contar a vida daquelas pessoas que viveram a guerra em suas próprias peles. Falar sobre as pequenas coisas e contar as piadas cotidianas", diz ela na entrevista. "O quadrinhos é para mim uma forma de encontrar respostas e dar respostas às gerações futuras e à minha própria".


Domínio narrativo

Zeina Abirached sorri quando comparam o seu trabalho ao de Marjane Satrapi. Ela se diz lisonjeada, mas afirma que não conhecia Satrapi quando começou a fazer seus quadrinhos. Seja como for, a comparação não é sem propósito. Ao contrário, assim como a artista iraniana, Zeina mostra um perfeito domínio sobre a narrativa gráfica. O que significa dizer que ela sabe explorar o silêncio, sabe criar uma ambiência para a história a partir de desenhos sem texto. Sem dúvida, Zeina consegue superar o receio original do leitor que imagina encontrar uma simples "cópia" de Persépolis (obra prima de Marjane Satrapi). As primeras paginas do livro já dão uma ideia do que o leitor vai encontrar. Ao longo de cinco páginas sem balões ou legendas, a autora nos leva a conhecer as ruas vazias de Beirute, suas barricadas, as paredes marcadas por tiros... Depois, em uma nova sequência de imagens, ela nos leva a refletir sobre o desafio de viver em uma cidade mutilada, onde ruas e quadras inteiras são "riscadas do mapa" pelo risco da atuação dos franco-atiradores.

O ponto alto do trabalho de Zeina é explorar o interior das casas e as relações de solidariedade que se constroi entre os vizinhos. "Durante a guerra, presentear um vizinho com frutas e verduras era uma atitude muito bonita. Mas, presentear frutas e verduras lavadas era um gesto de valor incalculável."

O Jogo das Andorinhas é uma daquelas obras fundamentais que precisam ser lidas. Esperamos que os leitores brasileiros não tenham de esperar tantos anos para ter acesso à obra.

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