sábado, 6 de novembro de 2010

Tardi e a mãe de todas as Guerras

 
A canção de Craonne (1917)
Adeus à vida, adeus ao amor
Adeus a todas as mulheres
Tudo terminou, para sempre
Desta guerra infame
 

Eis Craonne sobre a bandeja
Todos os grandes que fazem a festa
Se para eles a vida é rosa
Para nós não é a mesma coisa
o invés de se esconder todos os aproveitadores
Fariam melhor de subir às trincheiras
Para defender seus bens, pois nada temos
Nós, os pobres desgraçados
Todos os camaradas aqui enterrados
Para defender os bens dos senhores
Os que têm o dinheiro, a eles retornarão
Porque é por eles que morremos
 

Mas tudo acabou, pois os soldados rasos
Vão todos entrar em greve
Será a vossa vez, grandes senhores
De subir à bandeja (de Craonne)
Porque se querem fazer a guerra
Paguem-na com a vossa pele


Canção de Craonne


Canção de Craonne (pequena cidade ao norte da França) é um clássico da música francesa que há gerações vem sendo usada como símbolo dos movimentos anti-belicistas. A origem da música é praticamente desconhecida. Ela narra a luta entre soldados franceses e alemãs no Chemin des Dames (Caminho das Damas) nos primeiros dias da ofensiva de abril de 1917 e que resultaria no massacre das forças francesas. A canção não só aborda a inutilidade e brutalidade das guerras como expõe a verdade por trás dos uniformes, desfiles, medalhas e hinos. A força da música é tão grande que cantá-la em público nos campos de batalha da primeira guerra poderia levar um soldado ao paredão por insubordinação; e a sua reprodução pública permaneceu proibida até 1974. Agora os franceses e todos aqueles que defendem o fim de todas as guerras têm mais um vigoroso argumento em sua defesa. Uma obra de arte que já surgiu como um documento definitivo: “Puta Guerra!”, do artista f rancês Jacques Tardi.


Uma Guerra esquecida
A Primeira Guerra Mundial tornou-se uma passagem da história praticamente esquecida nos últimos 90 anos. A eclosão de novos e mais violentos conflitos praticamente arrancaram este acontecimento da memória mundial. Entretanto, apesar do esquecimento a que foi relegada, a Primeira Grande Guerra tem uma importância inquestionável para a história da humanidade. Tanto que alguns historiadores a chamam de: a mãe de todas as guerras. Nenhum outro conflito, até aquele momento, poderia ser comparado a ela, seja  em volume de perdas humanas, devastação, letalidade das armas ou número de países envolvidos.

Desde os primeiros dias, os movimentos da Guerra ficaram marcados por um equilíbrio de forças que levaram a uma disputada violenta por pequenos avanços no terreno. Era a Guerra de Trincheiras, onde os exércitos franceses, alemães, ingleses e de outros países ficavam anos inteiros enterrados no chão em valas cheias de lama, ratos e corpos despedaçados. As condições de vida dos soldados era tão terrível que centenas deles nunca mais voltaram a andar de forma ereta.


O Horror da Guerra em quadrinhos

O artista Jacques Tardi é um aficcionado pela Primeira Guerra. Quando criança, ele ouvia as histórias do avô, um ex-combatente francês, que o marcaram profundamente. Tardi já havia revisitado a guerra em outros trabalhos (ver comentário já publicado aqui no Nona Arte). Mas nada comparado ao nível de excelência alcançado por ele e o seu parceiro no roteiro, Jean Verney, em “Puta Guerra!”.

A edição espanhola, publicada pela Norma Editorial, a qual o blog Nona Arte teve acesso, traz em 101 páginas de quadrinhos e mais um bônus de 42 páginas, um resumo dos fatos mais importantes da Guerra entre 1914 e o armstício em 1919. Diferentemente do livro Guerra das Trincheiras, Puta Guerra não tem diálogos. Toda a história é narrada por um soldado francês que atravessa todos os anos do confllito e consegue sobreviver. O olhar atento desse narrador onisciente revela o absurdo das ordens de oficiais despreparados, os raros e surpreendentes encontros amistosos entre inimigos, a presença de soldados africanos destacados para defender seus senhores coloniais (franceses e ingleses), a rotina da vida nas imundas trincheiras, a tragédia de jovens mutilados, a ampliação do poder de fogo das armas, os pelotões de fuzilamento, os ataques aos civis, os mutilados... Diferentemente do que havia feito em "A Guerra de Trincheiras" ou em "O Grito do Povo" (seu único trabalho editado no Brasil), neste novo trabalho, Tardi não cria histórias ficcionais dentro da trama ou o faz de modo muito suscinto. Nesses outros projetos, o autor cria personagens que desfiam seus dramas pessoais tendo como contexto ou pano de fundo os fatos históricos (I Guerra ou a Comuna de Paris). Desta vez, foi como se Tardi quisesse dar um tom mais documental ao projeto. Ele parece mais preocupado em dar ao leitor uma visão ampliada dos horrores da guera do que em buscar uma "identificação" entre o leitor e as histórias humanas e "verdadeiras" dos seus personagens.

Tardi realiza amplas e minunciosas pesquisas sobre fotos e documentos da época. Para conceber seus desenhos, o autor também vasculha museus para ver pessoalmente objetos, fardamentos, armas e outros subsídios para seus desenhos. O processo de criação do quadrinista está registrado em um documentário que acompanha a versão espanhola.




O trabalho de Jacques Tardi é um apelo eloquente para que a 1ª Grande Guerra jamais seja esquecida. Sua narrativa é cruel e verdadeira. Nada de romances ou atos grandiloquentes que vemos nos filmes... Não há nada de belo em uma guerra, nada do que se vangloriar, parece nos dizer Tardi.

Esperamos que o bom momento que o mercado editorial de quadrinhos vive no Brasil seja uma oportunidade para que alguma das editoras nacionais se motivem a lançar Puta Guerra também por aqui.

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