Do blog português "Ler BD"
É bem possível, ampliando o que se indica no prefácio de Simone Bitton a este livro, que o nome de Mahmoud Abu Srour deveria estar contemplado na capa deste livro. Explicamos. Apesar deste livro ser escrito e desenhado por Maximilien Le Roy, na verdade a história é contada na primeira pessoa, e acompanhamos a vida de um jovem palestiniano, habitante em Gaza, que se chama Mahmoud Abu Srour, trabalha na mercearia da família, e que sonha com duas coisas: as jovens estrangeiras que ali trabalham e se relacionam com ele, por vezes amorosamente, e com uma carreira de artista, ilustrador, desenhador, banda desenhista... Tudo nos leva a crer que Mahmoud não é uma invenção, mas sim um jovem homem, real, tangível, com quem Le Roy rapidamente nutriu uma forte amizade e, juntos, construíram esta história: afinal, toda a sua matéria, inclusive algumas partes gráficas – os desenhos do próprio Mahmoud – são do palestiniano. O autor francês moldou tudo isso na forma deste livro, que nos é apresentado.
Não obstante, estando longe da sua confirmação (não fizémos entrevista, investigação directa, perguntas), poderemos eventualmente também estar perante um exercício de ficção, de auto-ficção ou de algum grau de alteração da verdade, por razões de justeza, justiça e protecção. Tal qual como Joe Sacco alterará parte das entrevistas e reportagens que faz para proteger as suas fontes de eventuais represálias, é bem possível que Mahmoud também seja uma confluência de outras pessoas. Ou não. Não temos modo de o saber com precisão.
Seja qual for a verdade, Faire le Mur coloca no seu centro a vida quotidiana e as aspirações deste jovem. Gaza não é mais do que uma prisão, um apartheid a seu modo, e todos os seus habitantes têm as suas histórias, projecções, medos, raivas, aspirações e fantasias. O último livro de Sacco, Footnotes in Gaza, de que falamos aqui, dá voz directa a muitas dessas pessoas, ainda que essas múltiplas vozes sirvam para criar a umagem unida de um evento histórico circunscrito. Faire le Mur apenas segue um jovem, que pensa as coisas, que não quer guardar rancores, nem se vitimizar, nem pedir simpatia ou pena de ninguém. Mahmoud quer apenas viver a sua vida como pessoa digna e, por mais que caia, voltar-se-á a levantar para retomar o caminho (e são vários os momentos em que percebemos as suas quedas, sem que jamais sejam transformadas em momentos melodramáticos, de queixume fatídico).
O autor francês emprega várias matérias gráficas para dar a ver essa experiência: há uma linha mais contínua de desenhos num desenho nervoso, mas realistas, de contornos “riscados”, e numa escolha relativamente reduzida de cores – vários tons da azeitona que por ali cresce?; há uma outra, de abordagens mais esboçadas, quase de apontamentos infográficos, esquematizados, de coloração incompleta, que servem para a representação de episódios históricos, ou figuras icónicas culturalmente reonhecíveis, como momentos-chave da história local ou mundial (quantas vezes estas se confudem na luta pelos direitos do homem), personagens importantes (para bem ou para mal), ou até mesmo pela amalgamação de lutas e princípios; há ainda momentos de vinhetas em branco, apenas co contornos a preto, que servem para mostrar momentos anteriores, analepses, lembranças relatadas; existem pequenos momentos, ilhas de acalmia de fim de tarde, em que os desenhos ganham cores mais densas, sombrias, e se nota perfeitamente a textura do papel sobre o qual se desenhou, texturas meio-reveladas por deslizar o lápis ao de leve, quase exclusivamente para passeios pela natureza, em silêncio, contemplativos (mas a diferença é quase mínima da linha principal); e finalmente existem os desenhos de Mahmoud, de vivas cores expressivas, sobretudo vermelhos, a lápis de cor, com uma figuração estilizada e quase alucinada, sem concentração realista, onde irrompem olhos e braços e movimento, como se quisessem dizer muito mais daquilo que aparentam dizer.
Algures no prólogo, a autora fala de “generosidade” de Maximilien Le Roy. Bom, discordemos. Essa generosidade seria mais clara se o nome de Srour estivesse na capa, como co-autor, que de facto é. Não poderemos inverter os factores? A generosidade não será do jovem palestiniano, ao emprestar a voz ao autor francês? Não é tanto Le Roy que “dá a voz” a Srour, como ocorre no caso do jornalista-Sacco em relação aos entrevistados em Gaza, mas sim a do homem-Srour ofertando matéria de expressão ao autor-Le Roy para este seu livro. A direcção é convergente entre os dois, no fim da jornada.
O livro ainda é complementado por vários “anexos”. Em primeiro lugar, e no seguimento preciso da narrativa principal, um breve conjunto de fotografias pessoais da vida de Mahmoud, que lhe confirmam a existência e são reveladoras da felicidade da vida familiar – fotos antigas da mãe (?), dos pais (?), dele em criança (?), com o irmão (?). Segue-se uma pequena reportagem fotográfica de Maxence Emery sobre os aspectos de controlo social da parte do exécrito israelita sobre a vida em Gaza, inclusive acções de protesto e a sua própria prisão (para identificação). Uma entrevista-conversa ilustrada com Alain Gresh, importante autor de livros afectos à questão israelo-palestiniana, à relação entre o Islão e a nossa modernidade, e editor do Le Monde Diplomatique. E ainda uma pequena lista de livros aconselhados por le Roy, quer contemplando ensaios e livros históricos, como romances, entrevistas e bandas desenhadas: Sacco, Squarzoni, Spiegelman e Mazen Kerbaj, cujo Beyrouth saiu na L’Association. Tudo isso são elementos que contribuem para o mesmo fito político de Faire le Mur, evidentemente, sublinhando a justeza da realidade retratada, ou forçando a ideia de verdade da sua ficção.
Carlos, a proposito do post sobre o clip do Paul McCartney. Essa confraternização entre tropas inimigas está em Joyeux Noël. É um filme de 2005 sobre a trégua da Primeira Guerra Mundial em dezembro de 1914, retratada através dos olhos de soldados franceses, escoceses e alemães. Se ainda nao viu - duvido -, vale a pena.
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