Em 1910 - 22 anos após a libertação dos escravos e duas décadas depois da proclamação da República - a situação de vida dos homens que serviam à Marinha Brasileira ainda era de brutalidade, humilhação e tortura. A Abolição ainda não havia chegado aos porões dos navios. Era comum os homens serem chicoteados em punição a algum tipo de "ato de rebeldia" ou insubordinação. A comida era de péssima qualidade e muitos sequer recebiam salários. A insensibilidade dos oficiais - provenientes da elite da sociedade da época - diante das condições às quais eram submetidos os marujos e o agravamento dos castigos físicos, que passaram a ser utilizados indiscriminadamente, tornou quase inevitável o surgimento de uma revolta.
Inspirados pelo movimento que os marinheiros russos haviam feito em 1905 no célebre “Encouraçado Potenkim” (a revolta dos marinheiros russos foi transformada em um dos mais importantes filmes da história do cinema e é apontada com um dos fatores que levariam à Revolução Russa, pouco mais de uma década depois), os marujos brasileiros também resolveram dar um basta à violência. Mas, ao contrário do que ocorreu na Rússia, a revolta dos marinheiros brasileiros foi quase totalmente apagada da história. Seus participantes foram mortos ou desterrados para o longínquo território do Acre. Por quase 90 anos a lembrança da “Revolta da Chibata”, como o movimento ficou conhecido, era proibida na Marinha. Só no ano passado a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de Lei que concedeu anistia Post-mortem a João Candido (principal líder dos marinheiros). E - ainda mais incrível - apenas em 2008, a Marinha liberaria o acesso aos arquivos sobre o marinheiro. Até então, oficialmente, João Cândido jamais integrara a Marinha Brasileira.
Como parte deste grande “resgate” histórico, foi lançado no final do ano passado um dos mais notáveis projetos de história em quadrinhos já publicado no Brasil. “Chibata – João Cândido e a Revolta que abalou o Brasil” está ao nível dos grandes livros de Quadrinho Documental lançados na Europa e Estados Unidos nos últimos anos. As qualidades de "Chibata" estão no traço minuncioso do artista cearense Hemetério, do bem conduzido roteiro de Olinto Gadelha e na importância deste momento para a memória brasileira.
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"Chibata" é construído em uma perspectiva de flash back alternando os momentos do confronto e as conversas do jornalista Edmar Morel com o já idoso João Cândido. Morel foi um dos mais importantes jornalistas de sua época e escreveu um livro sobre a Revolta da Chibata que durante os anos da ditadura militar, após o Golpe de 64, foi banido e proibido dentro da Marinha. Outro jornalista - ainda mais famoso - Aparicio Torelly (Barão de Itararé) havia tentado escrever - antes de Morel - uma série de reportagens narrando a saga de João Cândido. Mas, das 10 reportagens previstas, apenas duas foram publicadas. O jornalista foi sequestrado por dois oficiais, espancado e abandonado nu em Nossa Senhora de Copacabana.
Morel conheceu João Cândido em 1944 quando o ex-marinheiro estava preso (por ordem do Governo) em um manicômio do Rio, e passou 15 anos pesquisando a história da Revolta até lançar o livro definitivo sobre o confronto em 1959. Os autores de "Chibata" utilizam os encontros entre os dois personagens e as pesquisas de Morel para revelar aos leitores os detalhes mais importantes da revolta, da perseguição aos marinheiros e da vida de João Cândido. E o fazem com maestria... O livro em nenhum momento soa como uma aula de história forçada, mas como uma reportagem em Quadrinhos no melhor estilo.
O nível de detalhes sobre a arquitetura do Rio no início do século passado, a reconstituição das roupas usadas pelos personagens, a visão dos navios de Guerra... mostram que Hemetério realizou uma ampla pesquisa buscando material de referência, como: fotos de época, ilustrações, relatos de jornalistas e cronistas da época. As 218 páginas do livro revelam um apuro estético e um domínio da técnica narrativa dos quadrinhos por parte do artista. As longas sequências de planos sem diálogo e a concisão dos diálogos confirmam o equilíbrio que a dupla de autores conseguiu alcançar no livro, onde texto e ilustração cumprem com precisão seus papéis. O roteiro construído por Gadelha, extremamente hábil na condução do leitor e na forma como vai tecendo a história, é resultado de um trabalho de pesquisa que não deixou escapar nenhum dos detalhes mais relevantes da vida de João Cândido ou dos desdobramentos do conflito.
História de tirar o Fôlego
A Revolta da Chibata completa 100 anos em 2010. Momento ideal para trazer esta história ao grande público e para isso o trabalho de Hemetério e Olinto Gadelha representa uma contribuição fundamental. A população precisa conhecer a história destes homens que dominaram os mais potentes navios da marinha brasileira e ameaçaram bombardear a capital da República caso seus pedidos não fossem atendidos: o fim dos castigos físicos contra os marinheiros e a melhoria das condições de vida à bordo das embarcações.
Itermediado por Rui Barbosa um acordo de paz foi estabelecido com o Presidente Hermes da Fonseca e logo depois descumprido pelo próprio Governo. Todos os líderes foram presos e a maior parte dos envolvidos assassinados ou banidos para nunca mais voltar. Só a história do navio Satélite já renderia um outro livro. Após o fim da revolta, marinheiros que haviam participado do levante além de intelectuais de esquerda, assaltantes, prostitutas e outros "indesejáveis" sociais enviados com destino ao Acre. No caminhos dezenas foram jogados ao mar... Os que chegaram vivos ao Acre foram entregues como escravos ao seringueiros. Ninguém jamais voltou ao Rio de Janeiro.
Para quem quiser conhecer mais sobre a Revolta, vão aqui algumas dicas de leitura:
- A Revolta da Chibata (1986), Edmar Morel, Graal Editora.
- João Cândido do Brasil - A Revolta da Chibata (2003), César Vieira, Casa Amarela
- Revolta da Chibata (2005), Maria Ines de França, Editora Saraiva
Excelente post!
ResponderExcluirValeu Mig. Se você gostou deste post, vale a pena conferir um outro que publiquei sobre um navio alemão afundado no Uruguai, no princípio da II Guerra. Abraços
ResponderExcluirótimo me ajudou muito em minha prova de história
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