sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

A vida como ela é



O trabalho de Carol Lugosi é ouvir discos ao contrário e descobrir mensagens subliminares. Mônica Zuiden leva a vida a colecionar fotos de celebridades moribundas. Casimiro Vogel fez um mapa da cidade onde registra meticulosamente todos os suicídios, buscando definir um padrão entre as mortes e a arquitetura da cidade. Ifigênio Traum exibe no cinema Prestige, 24 horas por dia, há mais de 40 anos, o mesmo filme: um documentário norueguês sobre a pesca do bacalhau, sem legendas. Evaristo Gulag é um jornalista que complementa sua renda redigindo profissionalmente bilhetes para suicidas que querem deixar uma boa imagem para a posteridade.

Estes e outra centena de personagens fantásticos habitam uma cidade sem nome criada pelo quadrinista português José Carlos Fernandes. Com uma criatividade aparentemente sem fim e uma enorme capacidade de síntese, o artista cria histórias de apenas duas páginas que se entrelaçam e vão criando um painel absurdo e ao mesmo tempo extremamente humano. As páginas criadas por José Carlos têm em alguns momentos um humor cáustico e, em outros, uma leveza lírica. Cada história pode ser lida independente das demais. Mas é na medida em que se vai entrando no universo do autor e se familiarizando com os personagens desta cidade misteriosa que o leitor consegue ter uma idéia mais exata da dimensão literária da obra, por trás da sua aparente simplicidade.

A série "A pior banda do mundo", que já teve lançada no Brasil - pela Devir - cinco dos seis volumes já publicados em Portugal, já conquistou diferentes prêmios em festivais internacionais de quadrinhos e uma legião de fãs no Brasil e em outros países. O nome da série é uma brincadeira propositada. Banda desenhada é como são chamados os quadrinhos em Portugal. Ao mesmo tempo, o fio condutor das histórias é uma banda de Jazz composta por: Sebastian Zorn (saxofonista, líder da banda e serrilhador de selos), Idálio Alzhimer (pianista e verificador meteorológico), Ignacio Kagel (contrabaixista e fiscal municipal de isqueiros) e Anatole Kopek (barista e criptógrafo). Apesar de ensairem há mais de 30 anos, os músicos fizeram uma única apresentação ao vivo e não conseguem sequer se entender sobre que música estão tocando.

Por mais absurdas que as histórias ou os personagens de "A pior banda..." possam parecer, José Carlos imprime tal veracidade aos relatos que o leitor quase acredita que sua cidade fantástica realmente exista. Com suas paixões, loucuras, contradições... os tipos criados pelo autor português lembram os personagens de Nelson Rodrigues em "A vida como ela é". Por trás da aparente normalidade, ninguém nesta cidade é normal.

O traço de José Carlos tem uma forte inclinação à caricatura. O tom sépia dos desenhos, além de algumas referências como carros e eletro-domésticos nos transportam a um período situado entre as décadas de 40 e 50. Mas é apenas mais uma brincadeira do autor. Na verdade os dramas de seus personagens são bastante atuais e presentes.

"A pior banda do mundo" é literatura, da melhor qualidade. Vale a pena conferir.

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