O dia-dia de um pequeno vilarejo de Quebec (Canadá) com algumas dezenas de habitantes, no período entre as duas Grandes Guerras, e quase isolado do mundo, pode render uma boa história? Os autores de "Armazém Central", Régis Loisel e Jean-Louis Tripp mostram que sim. A série de quatro volumes (ainda inédita do Brasil), é envolvente e surpreende o leitor desde a primeira página. A primeira boa surpresa é o narrador da história. Assim como em "Memórias Póstumas de Brás Cubas", um dos maiores clássicos da literatura em língua portuguesa, a trama de "Armazém Central" é contada a partir da perspectiva de um homem já morto: Félix Ducharme. Proprietário do único estabelecimento comercial da comunidade, Félix morre aos 45 anos deixando a esposa Marie com a responsabilidade de tocar o comércio sozinha.
Conduzidos por Félix vamos conhecendo os principais moradores do pequeno vilarejo: o novo pároco, as irmãs velhas e fofoqueiras, o velho eremita que sonha construir sozinho o próprio barco, a professora primária, o louco... Aos poucos vamos tomando contato com a rotina dos moradores de Notre-Dame-des-Lacs, onde a vida transcorre sem alterações e sem grandes surpresas até a chegada de um estranho viajante. O misterioso Serge Brouillet chega ao vilarejo no início do rigoroso inverno e acaba alugando um pequeno quarto nos fundos da loja de Marie.
Em pouco tempo Serge começa a conquistar a simpatia dos moradores de Notre-Dame-des-Lacs e desperta o interesse de Marie, para desespero do falecido Félix Ducharme. Com seus dotes gastronômicos, Serge transforma o "Armazém Central" em um restaurante e surpreende os pacatos moradores com a revolução de sabores da cozinha francesa: empada de fígado de aves, cebolas caramelizadas, merengues em licor de ovos, ravioles, trufas de chocolate, biscoitos dos anjos, pudizinho de mostarda, foie gras... Como no clássico do cinema francês dos anos 1980, "A Festa de Babette", Serge vai pouco a pouco transformando a cidade com a magia dos seus pratos.
O Silêncio nos Quadrinhos
O traço e o uso das cores por parte de Loisel e Tripp conferem uma qualidade estética à série que colocam os quatro álbuns no nível das melhores criações em quadrinhos que já tive a chance de conhecer. O cuidado com os detalhes, o preciosismo na reprodução dos ambientes e na caracterização dos personagens podem ser conferidos nas páginas reproduzidas aqui no Nona Arte. Mas além do apuro estético, o roteiro e o domínio da técnica narrativa fazém de "Armazém Central" uma obra imperdível. A forma como a dupla vai, a cada página, aumentando a densidade da trama; o fortalecimento da relação entre Marie e Serge; os "ciúmes" de Félix; a construção do perfil dos personagens; a expectativa construída ao final de cada volume seguram o leitor. Por mais "singela" que a história possa parecer.
Outro ponto alto na obra é o uso do "silêncio". Algo raro e difícil de encontrar na maior parte dos trabalhos em Quadrinhos disponíveis no mercado. Loisel e Tripp trazem ao longo dos livros várias sequências sem diálogos. Este silêncio tem uma enorme força narrativa e fazem todo o sentido na história que conta a vida de pessoas simples, de pouca conversa, desconfiadas, acostumadas a viver no isolamento.
Os três primeiros volumes já estão disponíveis em português por meio da editora lusitana ASA (mas praticamente impossíveis de achar no Brasil). O Quarto volume, que encerra a série, foi lançado no Canadá em novembro do ano passado. Vale a pena conferir.
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